Sinal de alerta

Hora de ficar atento aos pequenos

Isolamento social em função da pandemia vem causando aumento nos acolhimentos psicológicos de crianças e adolescentes

Da noite pro dia, a rotina de mais de 38,6 mil crianças se desfez. Ao ser decretada a suspensão das atividades escolares em Pelotas, crianças e adolescentes passaram a conviver integralmente com a família, sem o contato com os colegas e a sala de aula. Seguros contra a Covid-19, no entanto, os pequenos ficaram mais suscetíveis ao desenvolvimento de problemas psicológicos. A coordenadora do Núcleo de Atenção à Criança e ao Adolescente (Naca) e psicóloga Gisele Scobernatti explica: “É uma completa e total desorganização do que conhecíamos. O ser humano se estrutura a partir de uma organização de rotina”.

A falta da escola no dia a dia das crianças pode impulsionar o desenvolvimento de doenças psicológicas, que começam a dar sinais na infância ou na vida adulta. Gisele explica que, apesar das atividades escolares estarem ocorrendo a distância, não é fácil que a criança entenda o porquê dos cuidadores, de uma hora para outra, adotarem o papel de ‘pais-professores’. “Quanto menor a criança, mais ela vai precisar do contato direto com pessoas. Em um ambiente puramente virtual, o cérebro infantil não está pronto ainda para assimilar e entender essa mudança”, salienta a psicóloga.

O Naca atende crianças e adolescentes vítimas de violência doméstica, por meio do acolhimento psicológico. Nos últimos três meses, a procura aumentou consideravelmente. Entre maio, junho e julho, 48 novos casos entraram para o sistema - o mês de maio ainda contou com duas novas inserções. Até o dia 9 de julho, nove casos haviam sido acolhidos: um por dia. “Via de regra, normalmente os números seguem uma tendência, um padrão. Antes, as pessoas começavam o acolhimento e tinham muitas faltas, desistências. Nós estamos notando que os novos casos têm 100% de frequência. É um dado bem significativo do quanto a adesão tem aumentado e a incidência de abandonos é menor”, explica a coordenadora.

Fora os novos atendimentos, a frequência das crianças já assistidas pela organização antes da pandemia também teve um salto expressivo e atípico para o período do ano. “Historicamente, janeiro e fevereiro são os meses de aumento, ou seja, no período de férias escolares, aumentam os maus tratos e situações de abusos”, conta a coordenadora. Em fevereiro deste ano, por exemplo, os atendimentos tiveram um pico de 27 novos casos.

Para muitos, os muros da escola são uma barreira de proteção contra a violência que ocorre dentro dos próprios lares. Sem saber por quanto tempo o regime de isolamento social vai durar, a parte psicológica das crianças e dos adultos adoece por conta da angústia, causando ainda mais sofrimento. “A coabitação forçada e permanente aumenta o nível de estresse, o que ocasiona a violência”, lembra a psicóloga. Os cuidadores também estão passando por mudanças e, consequentemente, podem desenvolver transtornos.

Rede privada sente aumento na demanda

A busca pelo acolhimento na psicoterapia também aumentou na rede privada. A psicóloga Márcia Ribeiro, coordenadora de uma clínica do ramo, conta que em um período de sete dias, três crianças precisaram do serviço, todas com os mesmos sintomas de depressão infantil. No início de julho, outros dois pequenos passaram a ser atendidos, dessa vez com dificuldades no aprendizado - comportamento que até então não demonstravam. “A alfabetização faz parte de 30% da vida da criança e ensinaram até aqui que ela teria que aprender de casa do dia pra noite. Um adulto ou um idoso têm uma musculatura emocional preparada pra isso, as crianças não”, completa.

Os pais precisam ficar atentos, principalmente quanto aos filhos que antes da pandemia já apresentavam sinais de distúrbios, como o transtorno do déficit de atenção com hiperatividade (TDHA). Márcia conta que, caso não recebam a atenção necessária, estes têm o aprendizado ainda mais difícil, uma vez que passam a acumular outros problemas, como ansiedade e baixa imunidade.

Uma postura bipolar, que alterna o humor entre euforia ou tristeza e choro fácil durante a quarentena, também é sinal de alerta. Em Pelotas, a rede SUS conta com Unidades Básicas de Saúde que podem encaminhar crianças e adolescentes ao Centro de Atenção Psicossocial (Caps) Infantil, ou então ao Campus Dr. Franklin Olivé Leite, ambulatório da Universidade Católica de Pelotas (UCPel).

Demanda reduziu em mais de 100 casos no SUS

Apesar da demanda, em sete meses a procura reduziu pela metade no Caps Infantil: no último ano, de janeiro a julho, foram atendidas 335 crianças; durante o mesmo período deste ano apenas 186 foram acolhidas no Caps Infantil. Uma das razões para a diminuição significativa na cobertura de assistência psicológica às crianças é o fechamento de instituições que anteriormente encaminhavam os casos devido à pandemia. Exemplos disso são as escolas. A chefe do departamento de Saúde Mental da Secretaria Municipal de Saúde, Márcia Rosa, explica que “muitos dos usuários que eram acolhidos no Caps não eram casos graves, mas acessavam o serviço para matriciamento, que é o encaminhamento a serviços da rede que atendem a casos leves e moderados”.
Por enquanto, as crianças e adolescentes são acompanhados por meio telefônico e recebem atendimentos presenciais individuais, conforme necessidade.

A rotina faz toda a diferença

A organização diária da casa onde Rafaela Voser e Marcelo Souza moram com os dois filhos, Theo, de três anos, e Henrique, de sete, mudou completamente em março, quando as ruas passaram a ficar mais vazia e os lares, cheios. Ela é professora e faz parte da equipe diretiva da Escola Municipal Mário Meneghetti. Já ele, é bancário. Depois da suspensão das atividades escolares, os pequenos passaram a ter dificuldades.

O mais novo é autista e, como explica a mãe, manter uma rotina regrada faz toda diferença no desenvolvimento. Theo dividia seu tempo entre a escola e três idas à clínica. Após a suspensão das aulas, os atendimentos passaram a ser quatro vezes na semana. Isso porque, em dois meses fora da sala de aula, a mãe notou que o filho estava estagnado, apresentando episódios de estresse. “Muito mais que o aprendizado, a escola é a evolução como um todo. O autista precisa desse contato social para evoluir”, diz Rafaela.

O filho mais velho também teve as aulas suspensas e passou ao modelo remoto, com chamadas de vídeo e acompanhamento pedagógico a distância. No entanto, ele também começou a demonstrar mudanças no humor. Além das aulas regulares, o pequeno fazia atividades extraclasse. Com a quebra na rotina, ele também passou a frequentar a terapia. “A rotina era muito agitada e de uma hora pra outra tudo parou. Ele entrou em uma linha depressiva”, explica a mãe.

Como professora, Rafaela se preocupa com a evolução educacional dos filhos por conta da distância física entre educadores e alunos. “Às vezes, em sala de aula, conseguimos notar que tem algo de errado com os alunos. (...) Cada dia que o Theo, por exemplo, perde de ir à escola, é um dia a menos pra ele evoluir”, destaca. Em Pelotas, as escolas privadas das redes municipal e estadual estão trabalhando com o envio de atividades a distância. Ainda não há uma data para a reabertura presencial dos educandários.

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